sexta-feira, outubro 24

CRÔNICA DA CIDADE Nº 61

(Pura reflexão)

Êta, dominguinho carrancudo este – brusco e chuvoso! Três e meia da tarde. A chuvinha intermitente desses dias resolveu me dar umas horinhas de trégua, então, corro rapidinho comprar pão e leite para o café antes que ela torne. Desviando meus pés de uma poça d'água e outras, eis que chego à frente do velho teatro. Paro e reparo algumas pessoas entrando e saindo do seu interior. Com as portas de vidros escancaradas, deu para olhar de fora o palco todo iluminado, resplandecente em cores simultâneas com inúmeros figurantes sobre ele - todos adolescentes a representarem, investidos em suas indumentárias coloridas dos pés à cabeça, e ao som de uma melodia contagiante até. Isso, deveras, me chamou a atenção, então, de pronto, resolvi entrar. Teatro é mesmo a minha paixão, o café podia esperar mais um pouco - afinal não é sempre que agente vê dessas coisas por aqui.
Antes de adentrar ao saguão, tal como cão que fareja os amigos do dono em seu redor - muito atento passei a observar melhor as pessoas que se encontravam por ali. Pessoas de boas aparências, diga-se de passagem, de classe média. Via-se pelo modo de vestir e conversar de cada uma delas – dava para se notar que a maioria não era daqui.
Bem ao lado de fora da porta principal, estava lá um baita de um banner com propaganda do evento: patrocínio do SESC itinerante, dizia. Ao me aproximar da platéia, verifiquei logo que a maioria das poltronas estava vazia, porém dava para se notar que o espetáculo era de primeira qualidade, não obstante a quantidade pequena de público presente, uma pena.
Parei alguns minutos, me encostando à parede da porta da sala escura, donde acontecia o espetáculo, e diante deste, ao me extasiar com as belezas de seus figurantes, trajando roupas leves e coloridas, luzes refletidas mil, na singeleza dos seus gestos, me pus a divagar como aqueles românticos de outrora que acreditavam piamente que só a arte era capaz de nos aproximar do criador.
Alguns daqueles levaram esta reflexão às últimas conseqüências, e chegaram a comparar o artista com Deus. Provavelmente porque o artista cria a sua própria realidade, exatamente como Deus creou o mundo.
Costumava-se dizer que o artista possuía uma espécie de imaginação criadora do mundo.
Em seu êxtase artístico, ele seria capaz de experimentar um estado em que às fronteiras entre o sonho e a realidade desaparecem. Apreciando aqueles jovens na linha de frente de minhas retinas, se mexendo para um lado e para outro, gesticulando - representando como se fosse à própria realidade incorporada neles, lembrei-me de Coleridge, aquele poeta inglês, que em um de seus arroubos extasiantes, assim se exprimiu: "E se, você dormisse? E você sonhasse? E se, em seus sonhos, você fosse ao paraíso e lá colhesse uma flor bela e estranha? E se, ao despertar, você tivesse a flor entre as mãos? Ah, e então?"
Agora mais do que nunca quero sonhar e sonhar sonhos reais, para que esse velho theatro que fora outrora a caixa de ressonância da cultura capelista, palco de grandes atrações nacional e internacional, orgulho daquela sociedade que sabia o que queria, volte nesse governo que se instala a partir de 1º de janeiro, ser o referencial cultural desta cidade e de sua gente, hoje tão abandonado e sujo, num mutirão, procuremos e achemos a nossa identidade perdida pela aí por esses caminhos tortuosos que esses últimos síndicos-bestas o relegaram.

(Nerval Pedro é escritor e comentarista)

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