sexta-feira, março 12

URUCUBACA...

Jeffinho Por: Jeff Picanço

Neste tempo tão cheio de perplexidades, é natural que, uma vez ou outra, as pessoas percam o rumo na vida. Semana que passou, procurando auxílio espiritual, eu visitei meu conselheiro, pai Zinho de Obatalá, que atende ali no centro de Curitiba, numa daquelas muitas salas do edifício ASA, na Voluntários da Pátria.

Passei um tempo danado na sala de espera, lendo umas revistas de fofoca do ano passado e umas “Vejas” de tresantontem. Estava demorando., segundo Mina Van Helsing, sua simpática e um tanto pálida secretária, Pai Zinho estava atendendo um prefeito de São Paulo que estava ultimamente num baixo astral danado. Ao meu lado, esperando ansiosamente, um conhecido político do governo caminhava e olhava para o teto, esperando o tempo passar. Parecia mais sem rumo que eu, pensei. No outro cantinho, perto do vaso de flores de plástico, uma socialite em decadência folheava como eu uma revista de fofocas. Loira aguada, parecia ter saído de uma coluna antiga do Dino Almeida.

Foi quando dei por mim, olhei à frente e tinha um senhor careca, com fino bigode grisalho, que estava em pé, me olhando fixamente: “O senhor é de Antonina?”, perguntou, amavelmente. Baixei a revista de fofocas no colo e respondi que sim, ainda meio confuso com a abordagem. O senhor, vestido com uma camisa branca e uma calça amarrada na cintura com um cordão, tinha se sentado ao meu lado. Percebi que estava de tamancas. “Manoel Vieira Espiga, seu criado”, disse, me estendendo a mão, que apertou com firmeza. Olhou bem nos meus olhos e perguntou, amistoso: “Me diga lá uma coisa, como vai a nossa vila?”.

Respondi que a cidade ia bem, ao que ele perguntou, com surpresa: “cidade? Já fomos elevados à cidade? Que maravilha!!”, respondeu, com bastante alegria. “Sabe” continuou, “aquela briga pra separar de Paranaguá foi muito grande. A câmara de Paranaguá não deixava a Freguesia progredir. Mas juntamos força e, graças ao empenho do velho, o tio da minha mulher, o padre Antonio, filho do velho Valle Porto, finalmente conseguimos tornar nossa Freguesia do Pilar uma vila. Apesar de que o nome que escolheram pra vila, Villa Antonina, pra homenagear um príncipe que ninguém sabia quem era, não agradou muita gente”.

Nisso foi que eu percebi que tinha a minha frente Manoel Vieira Espiga, um dos eleitores mais votados na primeira eleição da Villa Antonina, em 1797. “De onde o senhor veio?”, perguntei. Achei que ele ia responder que tinha vindo do inferno, do paraíso, do purgatório, afinal ele era uma aparição na sala de consultas de Pai Zinho. “Eu sou natural da Freguesia de N. S. dos Anjos da Villa de Água de Pau, ilha de São Miguel, Bispado de Angra, filho legitimo de Manoel Martins e Maria de Medeiros”. “Isso é Açores?” tornei a perguntar. “Claro!”, respondeu ele, como se fosse óbvio. Dos Açores estava bom. Melhor que o purgatório.

“Cheguei ainda mocinho na Freguesia do Pilar da Graciosa. Mas trabalhei duro, casei com minha Ritinha e fiz família nessa terra. Fiquei feliz de ter sido o mais votado na primeira eleição que teve pra câmara da Villa Antonina”. Lembrei então vagamente, de que, segundo tinha lido no “Factos e Homens” do Ermelino de Leão, Rita Bibiana do Espírito Santo era neta materna do Sargento Mór Manoel do Valle Porto, o capitão-povoador. Na primeira eleição para a câmara Manoel Vieira Espiga foi o eleitor mais votado, com 17 votos. Em 1803, Vieira Espiga ainda exerceu o cargo de juiz ordinário presidente da vila, um cargo público muito importante.

“Então, nossa vila é uma cidade?”, perguntou ele cheio de entusiasmo. Disse a ele que a vila promissora virou uma cidade importante, mas que, depois de meados do século XX estava passando por um bom tempo de decadência. Ele fez um olhar preocupado: “Mas e a câmara, está fazendo alguma coisa pra mudar isso?”.

Olhei para o lado. O político governista me olhava aliviado, como se finalmente visse alguém com mais problemas que ele. A loira socialite fingia que não era com ela, e ficava procurando rugas no seu espelho de maquiagem. Eu estava entregue à própria sorte, tentando explicar o inexplicável.

Vieira Espiga me olhou com serenidade, e me disse: “olha, meu filho, câmara é assim mesmo. Na nossa primeira eleição tinha de tudo. O importante é que as pessoas da comunidade acompanhem e fiscalizem os camaristas. Assim todos são obrigados a olhar no rumo que a comunidade quer”. Ele olhou em volta e me perguntou, depois de algum rodeio: “existe fiscalização? No meu tempo, alguns camaristas não gostavam de fiscalização e mandavam bater, mandavam calar os opositores. Isso ainda existe na nossa freguesia?”, perguntou, com um olhar inquisidor.

Olhei para o teto novamente, procurando desconversar. Vieira Espiga, visivelmente decepcionado, andava de um lado pro outro, batendo as tamancas. O político governista, ainda ali na sala de espera de pai Zinho, tentou acalmar Vieira Espiga, dizendo que o seu chefe também não gostava de críticas, e que isso não tinha nada de errado. A socialite, esperando a aparição de Dino Almeida, estava visivelmente nervosa, retocando nervosamente a maquiagem pelo rosto.

“Quer dizer que não mudou nada? Que tudo continua no relho, no porrete? Na vila que fundamos não existem as tais liberdades de expressão, pela qual os franceses, no meu tempo, chegaram a decapitar um rei?”. “Claro que não é isso, seu Manoel, são só alguns mal-entendidos, isso se resolve”, tentei contemporizar. “Qual o quê!”, respondeu Vieira Espiga, “isso é conversa”. “Não existe isso de meia liberdade. Se você não gosta de ser criticado, de ser fiscalizado, o que está fazendo na política?”.

Olhei ao redor. O político governista me olhava, concordando. A socialite mirava Vieira Espiga por cima do espelhinho, com medo. Decidi abrir meu coração: “é, seu Manoel, eu não sei. O fato é que as pessoas ainda não aprenderam a receber críticas, a ser fiscalizadas. Isso é uma mentalidade que demora a mudar”. “Mas será que demora mesmo?” perguntou ele, olhando para o político governista a meu lado. “Eu sei, como mais votado na eleição de 1797, que a câmara não é santa. Mas os camaristas têm de zelar pela câmara, pelo seu bom nome”. E concluiu, levantando a sobrancelha: “e, principalmente, não podem ter medo da fiscalização. Principalmente se fazem o que é certo!”. Dito isso, Vieira Espiga esfumaçou-se, e desapareceu.

O político governista fez um ar compreensivo, de quem já havia levado vários pitos e entendia o pito que eu havia levado. A socialite, recomposta, disse com seriedade: “este senhor, vestido daquele jeito! nunca que o Dino ia colocar ele no jornal!”. Fiquei constrangido, e antes que pai Zinho abrisse a porta, sai de seu consultório. Sai talvez mais perturbado que entrei. Desci as escadas pensando no que Manoel Vieira Espiga havia dito. Sim, dele, Manoel Vieira Espiga, que foi pai do padre Ignácio Diniz Vieira, e do qual descendem as famílias antoninenses Arantes, Ribeiros da Fonseca, Rendon, e outras. Na rua, ameaçava chover.

__________

NOTA.:

Jeffinho meu nobre...

Obrigado pela visita, foi muito bom o bate-papo, fazia tempo que não nos víamos... a vitamina de levedo estava estupidamente gelada, apropriada para o nível do reencontro.

Um abraço e marcaremos mais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

COMENTÁRIOS SOMENTE COM CONTAS NO GOOGLE